quinta-feira, 2 de agosto de 2012


OS OLHOS QUE ME VÊEM


                                                     Artur Madruga

 

 

Os olhos que me vêem,

  refletem o outro,

 os outros,

 os eus.

 

Os olhos que me vêem,

me vêem

através dos outros,

 através de mim,

 para dentro de mim.

 

Os olhos que me vêem,

me vêem subitamente.

E  o que de mim é ausente

se torna presente.

 




Novo Prefácio de Tiremos a Sorte


UM LIVRO QUE SE RENOVA
A CADA DÉCADA


                                                                                                          Paulo Bentancur


            Publicado em meio aos anos de 1980, Tiremos a Sorte marcou o conto no extremo sul do Brasil, num momento de transição política vital par o país. Saía-se dos porões de uma ditadura para o sol ainda incerto de uma democracia titubeante. Reaprendia-se a falar claro, sem as estratégias fundamentais em tempos de ausência de liberdade. Artur Madruga estreava na literatura com um volume de histórias breves onde essa liberdade já surgia plena. Ganhando prêmios, recebendo críticas favoráveis.
            Primeiro, pela estrutura dos contos, entre a crônica lírica e a confissão psicologicamente conduzida até um limite no qual o narrador meio que se dissolvia. A expressão não é forçada: dissolver-se como uma maneira de se entregar o mais fundo à própria condição humana. Dar-se ao ser que há em si e no outro como um jeito corajoso e nobre de perder-se para o encontro maior. Espécie de dispensa de uma casaca, inútil agora que era possível achar a essência.
            Os contos de Madruga não repetiam os truques da época ( o discurso engajado embutido em algum disfarce episódico) e nem fugiam do enfrentamento com as precariedades de suas personagens.
            Há um tom inevitável de réquiem em quase todas as tramas, e os protagonistas constituem-se em sujeitos à deriva sem que se emita o velho pedido de socorro dos desesperados. Caem, porém o abismo é uma forma de renovação e nessa queda ocorre uma metamorfose que é do país lá fora e do autor internamente.
            Uma das maiores qualidades do livro é o poder de sugestão que ressuma de suas páginas. Raras são as figuras não performáticas. Na maioria, os que vivem o drama narrado agem como se fossem animais mitológicos, estátuas da arte clássica, homens extraviados num tempo apocalíptico, almas carregadas por uma paixão que mais aquece contra o frio iminente do que as inflama com um desejo previsível.
            Não cabe em nenhuma síntese semelhante livro porque a renovação da contística nele está contida. Artur Madruga foi além do que o gênero até ali oferecera aos leitores. E superando barreias não só políticas, mas literárias, plantou um discurso livre de qualquer discurso – um percurso que vai dar num mar talvez agitado demais, num céu sem nuvens, em luzes que desenham o dia e a noite e criam movimentos adicionais no rosto expressivo de seus personagens.
            É livro para ser filmado, para ser levado ao teatro, para ser lido, sobretudo. Como conto, como crônica, como poema em prosa, como um salto sobre os muros já derrubados de tempos sombrios e sobre os muros de qualquer proposição estética. Vê-se um olhar agudo para a pintura, um ouvido atento para a música, um ritmo que se alimenta da própria frase, palavra a palavra, para melhor alimentá-la.
            Tiremos a Sorte parece até mesmo um título ocasional. Algo que não pretende mais que o gesto humilde de abrir o peito e eviscerar-se num ritual de sacrifício para possivelmente merecer, se não o mundo, o amor de alguém. Mas não há um jogo – não intencionalmente. Há uma decisão em cada história. A decisão mais difícil: desenhar a própria face no que ela tem de mais secreto e, por isso mesmo, mais convincente.
            Quem sabe essa é a razão de o livro ter permanecido com a mesma força literária de mais de vinte anos atrás e, hoje, relido, mostrar-se em meio ao que se publica por aí, uma surpresa tão nova quanto foi na década de 1980.