Meus textos publicados no jornal

 O Alvoradense:

invenção a dois: a gentileza

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Ainda sobre o processo criativo e as suas produções textual, quando nos reportamos sobre o dito anteriormente, relacionado a um provável diálogo entre Rimbaud e Verlaine, experimentemos o seguinte diálogo em que podemos observar, diante da fluidez verbal e organização reflexiva, a gentileza permeando as trocas dialógicas.
Diz Verlaine:
– Rimbaud, meu poeta adorado, sempre me incentivando e me empurrando pra frente, metaforicamente falando, não é verdade? Meu amigo de sempre, ando muito preguiçoso. A preguiça se espicha pelo meu corpo, adormece as mãos e relaxa os lábios, provocando suaves sorrisos ternos de alegria e satisfação quando sinto o carinho que alguém, desde sempre, como tu, ainda credita e investe em belas palavras que se cravam em meu coração. Gostaria muito de conferir o prestígio que me atribuis, porque estás envolvido com o que mais gosto e que me move, que é a literatura. Coisa que acredito ser a manifestação d’alma e que nos distingue nesse Universo, e que nos capacita a pensarmos, inclusive, sobre nós mesmos. Nossas vivências, propósitos e transitoriedades. Um fazer cujo esmiuçar de entre palavras denominamos como reflexões sobre bases filosóficas. Seria esse princípio conceitual a maneira como deveríamos abordar esse processo? Encantam-me tuas palavras, sinceramente. Debruço-me nessa curiosidade que tenho, pelo tempo de vida percorrido nesse lapso de permanência planetária, na busca dos signos que possibilitem desfazer o véu que cobre os mistérios da amizade e do amor entre os humanos. As sinergias, as sincronias, as intuições e tudo o mais que, como a apertar o peito, mantém-nos intrigados. Repetirei sempre que tenho muito a agradecer pelo tempo, pelo precioso tempo que gastas da tua atenção para comigo. Realmente és um poeta. Um ser de delicadezas, construído pela gentileza das próprias atitudes. Um espírito nobre, talhado pela esperança e pelo encantamento, cultuando, ao mesmo tempo, um inexorável amor próprio. Uma luminosidade pontual cuja incandescência nos abastece quando exaustos. E o fazes através dos vários eventos que emergem de tua poesia. Te afirmo sem medo e sem qualquer receio de ser protagonista de um lugar comum uma palavra que somente a expresso quando significativa: obrigado. Obrigado a ti e a poesia por contatar-me nessa vida, tornando-a plena. És o porta-voz do canal através do qual sou atingido. Desculpe tal extensão, não consigo parar. É como se fosse conduzido, escrevendo sem sentir os dedos segurando a pena em desvario, sem saber o que foi escrito na linha anterior. Chega, paro por aqui. Arrasto a cadeira e levanto. Esse outro que me prende em palavras deve sair agora. Ufa! Consegui. Dirijo-me à sacada e respiro um pouco do ar puro da noite. O cheiro do incenso de sândalo está forte. A dissolução do inesperado me precipita na desolada escuridão, por cujo éter jorra estrelas: matéria-luz que desencadeia as ações primordiais de nossas glórias e fracassos. Fique sempre com meu afeto. Verlaine.

Sobre o I Seminário Internacional de Educação e Sociedade

Quando se discute educação, a exemplo do que ocorreu em Alvorada de 22 a 25 de julho deste ano, provavelmente se esquece de mostrar exemplos e apontar o que já foi feito, porque algo certamente foi feito e está passando despercebido. Não atacarei palestras e palestrantes, porque acredito não ser produtiva a crítica pela crítica. Para isso, teríamos que buscar elementos e referências que apontassem ponto a ponto as possíveis falhas.
Todo evento sempre tem as suas falhas. Dentre elas poderíamos citar o desafio de apresentar alguma novidade no âmbito educacional, como se propunha o evento. O que é discutível, também. Os limites ou abrangências do mesmo compete aos organizadores explicar. Entretanto, o I Seminário Internacional de Educação e Sociedade, que ocorreu em nossa cidade, trouxe uma grata surpresa, daqui mesmo do nosso estado, e que superou as expectativas. Óbvio que é uma opinião pessoal, restrita ao que considero construtivo e pertinente à nossa realidade educacional de cidade periférica. E não é por isso, somente. Restrinjo-me a pautar a mesa que participei, no dia 25, porque foi o que me fez acreditar que, ao final, alguma coisa tinha valido a pena.
A palestrante me pareceu extremamente eficiente em sua reflexão quando fez exatamente o que disse: estabeleceu a conexão que um educador deve fazer entre o pensar global para uma adequada ação local. Irrestrita. Trata-se, pois, felizmente, da profa. Dra. Sandra Monteiro Lemos, daqui do nosso estado. Sua palestra foi na Rua Ouvidor, 87, no Bairro Americana. Falou sobre o EJA na contemporaneidade: desafios (res) significações e práticas.


Sandra Monteiro Lemos | DIVULGAÇÃO
Sandra Monteiro Lemos | DIVULGAÇÃO

Diferente do que ocorreu na praça durante a semana, quando se observou certa indiferença da plateia, que parecia não estar ouvindo nenhuma novidade. A Dra. Sandra conseguiu, para surpresa geral, manter uma plateia lotada em completo silêncio, atenta e participativa por três horas ininterruptas. Tinha-se a impressão que os presentes seguiam o fio da meada do tema desenvolvido de tal forma que, por um casual instante, alguém ousou assoviar lá no fundo, distraidamente, e foi de imediato interrompido pelo público que, àquelas alturas, não permitia que uma mosca atrapalhasse a prazerosa palestra. Pessoas extremamente atentas, contribuindo o tempo inteiro, encorajadas a falar, falando com propriedade, somando com a palestrante, trocando e compartilhando com os colegas suas impressões sobre o tema. Não há como não perceber o nível e valor da mesa, se por ventura tivéssemos que avaliar a mesma. E não foi só isso que ficou evidente. Pode-se elencar, entre outros apontamentos, o nível de excelência dos nossos educadores presentes. Uma amostra digna desses trabalhadores que se esforçam diariamente para o cumprimento de uma das mais dignas tarefas sociais cuja valorização não encontra correspondência.
Muita coisa pode ser dita sobre o Seminário. E é necessário que se fale, pois é para estimular a discussão que se pressupõe a existência desses encontros. Cabe a cada um dos cidadãos e cidadãs dessa cidade a participação democrática na avaliação do mesmo. O fruto a ser colhido terá o sabor do que aqui foi plantado, caso a semente receba o cuidado e atenção que necessita. Ao contrário, esquecida, fenecerá sob a terra abandonada e seca.

Receitas da invenção

Podemos pensar sobre uma fórmula para o processo inventivo, enquanto criatividade, inovação ou a algo que o equivalha, mas que se pressupõe não conhecermos ainda. Algo que justifique o apelo que prende e desperta certo interesse ao que possa satisfazer o nível de ineditismo ou originalidade que ansiamos, quando pensamos em individualizar o que somos do conjunto de elementos que tenta nos homogeneizar e que, no entanto, por várias vezes, existe anteriormente em nosso subconsciente.
Em vários níveis confabulamos com o indivíduo que vemos no espelho, livrando-o da dependência óbvia das massas que se enovelam cada vez mais, em redes que se sobrepõem e se especializam, conforme a sociedade avança em sua capacidade de crescimento tecnológico e econômico, abrindo um abismo aos aspectos sociais e políticos. Mas e a fórmula ou a receita para a invenção que transforma e vira a mesa, arranca os rótulos, rompe com o status quo, onde estará? Essa é uma grande indagação cuja resposta talvez traga a garantia da superação. Se tentarmos uma única resposta, não encontraremos, porque a resposta não é singular, transporta uma pluralidade de caminhos e tendências, dependentes das escalas de valores culturais, geográficos, filosóficos, políticas, emocionais etc. etc. etc..
Se pensarmos no foco da conversa, por exemplo, poderemos imaginar, nesses estados de invencionice, a ira que nos provoca um texto que nos prende até um determinado ponto, despertando a nossa curiosidade e frauda as nossas expectativas, porque, ao final, nada do que se propunha nos foi dito. Realmente, confesso que não deve existir uma receita para a invenção, e isso não é uma fraude, porque é uma das poucas coisas que conheço que tem um único ingrediente convincente, mesmo que provisório: muito suor, acrescido de árduo trabalho para que o provável talento justifique a “receita da invenção”. Fora disso a mágica não ocorre, a inovação não surge. O trabalho deve se iniciar com um primeiro passo. Aí sim a magia da curiosidade e da novidade se ilumina no caminho subsequente.
Proponho um exercício em termos de prosa poética. Imaginemos dois grandes poetas se encontrando para uma conversa amigável: Rimbaud e Verlaine. O que um diria para o outro se a gentileza e o agradecimento por uma recíproca influência devesse ser verbalizada em registros textuais? Difícil? Não, nada é difícil porque a essência humana atravessa o tempo e se perpetua independente do lócus histórico. Tente, mande sinal de fumaça. Aguardo.

Grafite: arte e transformação

Havia uma curiosidade em relação àquilo que acontecia nas aulas de arte nas séries finais do ensino fundamental. Era um desafio tentar entender, em uma época em que o grafite ainda não era visto como uma das possibilidades do fazer artístico, e que estava diretamente ligado a atos infracionários e rebeldes que eram estigmatizados e que recebiam, até então, o rótulo pejorativo de “pichação”, quer dizer, que usava piche para marcar paredes ou criticar. Mas pichar também era grafitar, até então, de acordo com os dicionários, por isso a mistura de conceitos. A separação entre os dois termos, pichação e grafite, ocorreu depois, para penalizar o primeiro e absolver o segundo. Comecei, para tanto, fazer algumas reflexões que apontaram para uma afirmação provisória.
Um pouco distante dos fundamentos teóricos que deveriam ser “repassados” aos alunos, visando suprir a pressão que o professor de arte sofria dos professores de matemática quanto aos cânones geométricos que os educandos necessitavam para o seu sucesso nessa outra área do conhecimento. Estabelecia-se o conflito entre a lógica matemática e a linguagem criativa.
Era curioso ver que, embora os padrões que tentava impor em sala de aula quanto ao estudo do ponto, linha, figuras geométricas, história da arte, releituras de obras de arte, persistia a espontânea manifestação, por parte dos alunos, do grafite em sala de aula. A maioria das releituras ou criações trazia essa linguagem das ruas para a sala de aula. O aluno portava um conhecimento extrínseco e inovador próprio de seu cotidiano. Deveria existir algo naquela tendência, o que seria aquilo?
Vinha-me em mente coisas como os conflitos de gerações. James Dean e Elvis Presley movimentaram a juventude de sua época, com o rock e a famosa Juventude Transviada. Os Beatles despertaram pânico, há pouco tempo, com os seus cabelos “longos” e música diferente. O movimento negro no mundo espalhou a moda dos cabelos “black power”, como forma de desafiar o status quo. Mary Quant fez a burguesia desmaiar com a sua minissaia. A Semana de Arte Moderna, no Brasil, foi vaiada e atacada nos jornais. Simone de Beauvoir lançava o seu livro O Segundo Sexo, na França. Quer dizer, ocorreram sempre momentos de contrastes que chocavam no início para posteriormente ser absorvido pela sociedade.
Mas o grafite era aquilo que contemplava a necessidade que o ser humano tinha, independente de sua época, de manifestar-se em suportes públicos, como a querer dialogar com o seu próximo ou com as suas forças internas, como fizeram os primitivos homens das cavernas.
Vieram, em socorro, os estudos teóricos de Piaget, Paulo Freire, Maturana e os saberes e sabores de Rubens Alves, entre outros. Era necessária uma flexibilização do ensino da arte para uma nova postura diante do novo.
Novos diálogos tentavam romper estruturas pré-estabelecidas para permitir possíveis reconstruções da velha lógica social, comunitária, de inter-relações. Por que o suporte público? Por que o desafio? Por que a ligação do fazer local com o que já era feito em outros lugares, estados, países?
Percebia-se que a velocidade com que os meios de comunicação se desenvolviam estava diretamente relacionada a rápida aquisição dessa nova ordem na pequena cidade de periferia onde ministrava minhas aulas de arte. Todos eram cúmplices: a televisão, o cinema, os jornais, as revistas.
Um fenômeno antigo com um nome novo, da arte rupestre ao grafite, minha pequena cidade estava ligada ao resto do planeta através da arte de rua.
E não era somente pela manifestação artística em si, mas pela sede de, ao contrário dos homens das cavernas, que desenhavam nas paredes como que a querer prender a alma dos animais que iria caçar, contestar valores, impor o seu “pensamento revolucionário” – condição intrínseca da juventude. De todas as juventudes em todos os tempos: forçar a revolução cultural como um ato de transformação.

A arte não é inútil

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Como um maestro que dirige uma orquestra e se ocupa dos detalhes que, em essência, são necessários à execução harmônica que torna agradável uma peça musical, e que, para isso, vale-se de uma boa partitura, de músicos competentes, de instrumentos de qualidade comprovada e de uma acústica que possa corresponder ao objetivo a ser alcançado, um diretor cinematográfico se preocupa, deveras, com um bom roteiro, bons fotógrafos, figurinistas, atores, equipamentos etc. etc.
Um bom músico, para compor uma orquestra necessita, antes de qualquer coisa, ser um expert individualmente na execução do instrumento escolhido, com um caminho trilhado sob a base de muito estudo, de pesquisa teórica intensa e de uma prática incansável.
O bom ator, como costumeiramente digo, tem que me convencer de que ele não é aquele fulano de tal que está ali interpretando aquele papel. Ali naquele instante em que está atuando, ele tem que me passar a impressão e convencimento de que ele é senão o personagem que construiu para a encenação a que se propõe. E não importa se essa expressão ocorre na televisão, no teatro fechado ou de rua, ou no cinema.
O músico, o ator ou quaisquer outros artistas tornam visíveis, em qualquer lugar ou suporte, o que às vezes nos escapa à compreensão e está incrustrado em nós. Cavam camadas sobrepostas pelo tempo, e expõem a nudez da nossa alma.
É esse o caso, por exemplo, do filme Getúlio, que nos surpreende do início ao fim pelo seu roteiro limpo, pela exuberância interpretativa de seus atores, por uma fotografia irretocável e por uma narrativa que nos deixa sem fôlego, proporcionada por uma direção que levantou uma plateia de professores em esfuziantes aplausos, ao final de uma sessão de pré-estreia numa sala de cinema em Porto Alegre. Os profissionais que executaram aquele trabalho não estavam ali, mas a sensibilidade dos expectadores foi tocada sobremaneira.
Getúlio nos provoca o que um trabalho de arte deve perseguir: a reflexão.
O exercício do jogo de luzes e imagens que entram em nossas retinas e que são decodificados pelo nosso cérebro produz a exacerbação do sensível, importante para que ocorra a catarse estética própria da verdadeira manifestação artística.
Juntemos a isso a narrativa literária que nossa possibilita descrever a composição de seus registros poéticos, costurando os quadros que se formam em nossa memória. Elas dialogam com as trocas cotidianas que pontualmente efetivamos.
Imperdível filme, prazerosa assistência, inquietante constatação de que a vida se revela nesses ciclos históricos que se repetem vorazmente e, com o avanço tecnológico, estreita a noção de brevidade dos fatos que vão se repetindo, mesmo que a fadiga dos dias não nos possibilite essa percepção.

Bodas d’alma

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Alguém me pergunta:
- É difícil ler Bentancur?
- Depende, respondo. Sobre qual gênero de sua escrita estás falando? O conto, a crônica, o romance, a literatura infantil ou a poesia? Em todos ele busca o perfeccionismo. Esculpe, nas entranhas das palavras, o objeto que se materializa no imaginário do leitor. Uma forma cuja delicadeza dos traços consegue dar vida às palavras que friamente são impressas no papel. Fortes imagens com propostas conceituais flexíveis diante do olhar investigador que busca referências para suportar o peso do conjunto de ideias que os poemas trazem. O autor se sujeita a ser um mero portador de lembranças que trouxe guardadas no bolso durante o caminho que traçou até a execução do livro.
Entre os gêneros que o autor trabalha, posso dizer com certa dificuldade se quiser manter uma postura imparcial, que não é fácil, mas se respirarmos adequadamente para acompanharmos o seu ritmo poético, não será difícil. Se distância não houvesse entre o corriqueiro e a prosa poética, poderíamos transformar o insistente tédio, que em verdade muitos tentam remover em divãs de psicanalistas, num prazer reflexivo de uma estética lírica, e que a mesma nos convida a digerirmos o possível fel da existência como se fosse saborosa cereja, adocicada em calda vermelha. Um simples gesto se faria necessário: prender-se ao gancho da Descoberta para nos erguermos da passividade e compartilhar com o poeta o flash irreversível da palavra espolcada, reelaborando em nós a sua escrita.
“– Eram preciosas, salvavam!¹”, afirma como sentimento de uma força que o possui. “E o mundo virou outro mundo, não dependia mais dele¹”.
Era exatamente esse o elo que faltava para que, em meio a tantas páginas lidas, se pudesse fazer a ligação dos tempos de Paulo Bentancur e de Garcia Marques. Garcia suspende o tempo no início de Cem Anos de Solidão, quando seu personagem está à frente do pelotão de fuzilamento; Paulo o movimenta para que essa suspensão possa nos submeter a um mergulho enigmático, descrevendo a alma que se desnuda (em bodas simbólica) expondo os ossos como algo que permanence, para o prazer dos paleontólogos da escrita – talvez os mesmos que dizem ter conseguido decifrar as placas de barro dos sumérios. Uma pequena evidência que se revela num traço comum entre o primitivo e o moderno, que transfixa entre os polos da dor e da alegria os espelhos dos nossos kaleidoscópios.
Entretanto Paulo ousa mais. Em seu livro de poemas Bodas de Osso nos permite, a exemplo de Júlio Cortazar, jogar novamente o Jogo da Amarelinha. Se abrirmos o livro direto na página 52, direto na poesia Descoberta, descobriremos um jogo de saltos, para lá e para cá, em qualquer direção que quisermos, porque a riqueza de uma poesia lúdica foi iniciada, e nos construiremos como co-autores, independentes do criador. Nesse sentido, ler Bentancur fica muito fácil, porque a sua propospa nos joga em meio a um turbilhão criativo de inesperados lances, de transformações e surpresas. Mais uma vez a literatura, enquanto arte, nos aponta a sua utilidade e encantamento. Bodas de Osso não passa de um sussurro do avesso a lembrar-nos que não estamos mortos.
¹ Excertos da poesia A Descoberta, do livro Bodas de Osso, poemas, Paulo Bentancur, Editora Bertrand Brasil, 2005.

O sonho mágico de Pandora



A capa do livro O Soneto de Pandora, de José Couto, tem a arte de Driin Pedro
A capa do livro O Soneto de Pandora, de José Couto, tem a arte de Driin Pedro

Nesses novos tempos, quando a internet e as redes sociais trafegam no internautês , e cavam fossas virtuais, distanciando as pessoas e suas ancestrais relações do olho- no- olho, vemos surgir, como se saísse de uma caixa que se abre, criando a magia do surpreendente, o Soneto de Pandora, de José Couto.
Um livro que aponta, referencia e designa a nossa intrigante inquietude. Ao mesmo tempo em que nos move e nos paralisa. Deixa-nos abandonados diante do estremecimento que o nosso olhar crítico invoca, como leitores, que recriam, recompõem os ritmos, as melodias que vibram ao tanger as velhas cordas esquecidas da alma.
Como singela passagem, as imagens que a poesia produz, convidam o nosso olhar à sua nítida abrangência. Estilhaça e amarra as partes de um todo antes desconhecido. Retrações e sustos impelindo ao enigmático. Sem saída. Tece possibilidades em vários sentidos. Pode-se, quer queiramos ou não, interpretar como uma colagem fantasmagórica a ser necessariamente desvendada. Um arremesso à distância para que a alma busque suas partes na tentativa de recompor o que havia perdido, e que deixara para trás. Como se algo forçasse a necessidade de abrir cortinas, bruscamente descerradas pelo esquecimento. Ou, ao deter-se um pouco, observar o menino que abre os olhos em espanto, diante do inovador. E se recompõem. Do fato esquecido e das histórias em tropeços recebemos os estilhaços da transparência quebrada. A urgência da poesia abre os seus baús para nos mostrar suas luzes guardadas.
Já em “A Impermanência da Escrita”, Couto anunciava e denunciava a impermanência do tempo, em um absurdo relativismo que o segmentava, fatos descontínuos, separados, fragmentados, embora únicos. A “Impermanência” separava sonhos, desesperos, possibilidades embora os unissem refletidos nos signos narrativos. E os revelava.
“Os mesmos pincéis e tintas que impregnavam a tela branca de “A Impermanência”, voltam a se expressar como ânsia única em “ O Soneto de Pandora”, fincando cravos no tempo, transmutando-os em caneta e tinta que buscam a folha em branco para fixar suas poesias, marcar seus espaços próprios e usar para isso o ritmo encantador de uma serpente indiana, que sai do cesto e nos hipnotiza em aguda reflexão, muito bem lembrada por José quando diz: Assombrada a poesia risca o céu. Jorram estrelas.
Enfim, Couto com seus poemas consegue usar as palavras para “bordar” a vida entremeando-a num coletivo amorfo, ao mesmo tempo em que a individualiza e amplia num contexto universal. Colore com palavras pintando a vida, remetendo-nos à infância, de onde nunca saímos.  Ansiosamente aguardamos o lançamento do mesmo.

Alegrias ou folias?

O homem está na cidade assim como a cidade está no homem – Ferreira Gullar
Quando a alegria extrapola e sai por aí a fervilhar, sem um mínimo de disciplina que possa nos convencer, costumamos dizer que ficou somando as pequenas estridências desencontradas e, enoveladas como se fossem ganchos presos de forma contínua, formam uma corrente, isto é, a alegria vira folia. Afirmemos às suas nuances o quão significativos são os valores atribuídos a ela. Valores que vão, repetindo o chavão para tentar deixar mais claro, “dos oito aos oitenta”. E se essas alegrias enoveladas estiverem tomando como referências alguns objetos positivos ou negativos, voltamos ao lugar comum: são “outros quinhentos”. Alegria transformada em folia se relativiza diante da escala de valores de cada um. Uma alegria que entristecida para um, no fundo pode transformar-se em folia para o outro – sob o ponto de vista do outro. Essa pluralidade de construções é que afirmam isso ou aquilo sobre algum assunto corriqueiro ou evento de qualquer origem. Posições que se consolidam feito espeques cravados na terra: imutáveis e inflexíveis. Opinião pedra difícil de esfarelar. Seus contornos buscam qualquer viés que aponte o caminho do objetivo mínimo a ser atingido. Até aqui convergimos para um modo comum de refletir, ou é o senso comum que, insistente, procura as brechas das nossas línguas para que possamos, diante de uma suposta vulgar necessidade, visualizarmos o objetivo a ser atingido: desconstruí-lo para reorganizá-lo em outro formato, como senso crítico. Perceberam como se pode ir levando alguma coisa sem que se dê conta de que a tortuosidade do caminho pode nos deixar à margem do que pretendemos encontrar? Ou ficaremos à margem ou inventaremos outras margens, tantas quantas forem necessárias e dependentes daquilo que nos queiramos permitir avançar. A pluralidade e a diversidade são isso: variados caminhos, variados pontos de vista, variadas soluções, variadas recusas, variadas construções (todos inimagináveis, até que se constituam). Assim trilhamos pela pluralidade sob suas diversas denominações. Uma delas chama-se democracia, cujo pleno convívio pode enriquecer o nosso dia-a-dia. Se esse enriquecimento está revestido de bondades referendadas pela nossa origem judaico-cristã ou não, se está destituído de signos religiosos ou não, se está investido de esperança ou não, se está representando esse ou aquele segmento do pensamento social ou não, inicialmente não terá a menor importância. A importância maior desse enovelamento de alegrias e folias é que a luta contínua irá transformar o indivíduo e, como consequência, o seu entorno.  Essa transformação poderá ser o suporte ao bem maior que é o bem coletivo. Esse sim irá exigir de nós o máximo de urbanidade entre as relações sociais para que possamos crescer juntos. A urbanidade aqui mencionada contempla alguns conceitos como o significado da palavra respeito e o exercício do mesmo em todos os níveis possíveis, dessa nova convivência inspiradora.

Escrever para criança não é fácil

Finalizei mais dois livros infantis. O primeiro foi “A Formiguinha Skatista”, o segundo “A Formiguinha Grafiteira” e o terceiro “A Formiguinha Inventora”. São livros de fácil leitura que provocam a interpretação, reflexão e participação da criança, ilustrando todos eles. Nenhum tem imagens. Elas são criações que cabem aos pequenos leitores, conforme o sensível em cada um e de acordo com a sua visão de vida que está construindo.
Como o adulto que lê um livro cujas imagens nascem do mistério das palavras e parágrafos que provocam a sua imaginação, nas crianças pensei em provocar a imaginação a ponto de registrá-las através do desenho. Nesse sentido cada livro será único ao final de cada leitura, porque as ilustrações serão frutos da imaginação dos pequenos leitores, sem referências já existentes, para que sejam livres nas suas buscas criativas e nas analogias com o já sabido, para que assim, nesse sentido, a leitura seja algo a ser estimulado desde cedo. Para isso foi necessário usar várias ferramentas, como a experiência de anos em sala de aula com crianças dessa faixa etária, a formação como pedagogo na Universidade Federal, a formação como professor de currículo por atividades, formação de professor multidisciplinar, como pós-graduado em arte educação, os livros já publicados e os vários prêmios literários que enfatizavam um caminho literário a ser percorrido.
Escrever para criança não é fácil, não é ficar contando histórias da carochinha em tempos de internet. Elas sabem muito, constroem muito mais rápido pela carga de informações que lhes chegam de forma assombrosa através dos diversos meios de comunicação. Mas, antes de tudo, nada disso poderia ter um mínimo de coerência em sua execução, se não nos colocássemos no lugar da criança no momento de escrever para elas. Se não voltássemos à nossa própria infância para compreender a infância com a qual queremos dialogar. Por isso o skate, o grafite e a invenção são os temas que perpassam os três livros, coisas atuais para os pequenos de hoje. Com essas ferramentas se pode tentar prendê-la ao texto de forma espontânea, criativa e divertida, desenvolvendo talentos, incentivando a pesquisa e a participação. O desejo de comunicar o aprendido, a identidade com o que é relatado.
Na Formiguinha Skatista a criança vai desenhando toda a história página a página, finalizando com um pequeno texto que ela vai criar contando como é que, sob seu ponto de vista, termina a história. No Segundo, na Grafiteira, também. A criança vai desenhando página a página e, ao final, é convidada a apresentar uma solução gráfica para a formiguinha, buscando auxiliá-la na comunicação através da arte de rua, o grafite. E, no terceiro, na Inventora, a criança vai novamente interpretar, através de desenhos, registrando os signos que lhes chegam nas imagens inconscientes.
A trilogia da formiguinha se encerra com a criança dando rumo aos intentos do inseto, criando para a formiguinha as ferramentas que ela necessitará para a sua luta ambiental.